domingo, setembro 17, 2006

Depois de Amanhã

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À Cleópatra porque para ela não há depois de amanhã


Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não...
(...)
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...
Sim, talvez só depois de amanhã...


Álvaro de Campos



Quantas vezes se dirigiu Bosie ao cárcere de Oscar Wilde? Mudos seremos quando quisermos surpreender uma resposta. De Profundis e uma alma serena que por detrás de ferros escrevia ao seu amor do qual esperava uma aparição. Dependência gera desconforto, a fragmentação humana como um puzzle onde faltam peças. Wilde era um dependente de amor, como dependentes são aqueles que num jogo excêntrico onde Quixotes e Panças amortecem as quedas em roletas, deixam à mercê dos glutões do Presto toda a sua vida. Tapava a cabeça e destapava pés, tapava os pés e destapava a cabeça num lençol inútil que não acalentava o corpo. Mas há mais quem cubra o rosto e num trivial retrato também cobre os restantes membros, mas aqui há pano de sobra. A quase um metro do chão amordaçam-se actos sucessivos duma tragédia, com grades e tudo, e um cheirinho verdadeiro a hospital ao pequeno-almoço, ao almoço e ao jantar. Os sentimentos guardam-se em ampolas de desespero, dor e muitas saudades. Escaras de decúbito por ossos rente à carne e pressões obrigatórias. Seriam utopias se todos fossemos humanos. Estado nutricional debilitado, humidade, falta de asseio, excesso de calor ou frio remexem-se em camas de madrugadas sem creme hidratante ou anti-séptico. Como animais abandonados são deixados acamados, idosos e inválidos e a acompanhá-los contactos falsos e suores que os transformam numa metamorfose de Kafka. E ei-los a olhar para os moinhos de vento sem Dulcineia, com apenas Mercúrio que os presenteia com mensagens do nada. O mensageiro dos Deuses também nunca trouxe nenhuma carta de Bosie a Wilde, mas Wilde escreveu-lhe até aos últimos dias da sua vida. Pois o amor não tem tempo e perdoa a ausência. A ruptura com o quotidiano desencadeia um deficit com o globo terrestre, acaba-se a autonomia, desfazem-se as certezas, os seus ecos rodopiam nos leitos ao lado: são estes os retalhos dum acamado. Por detrás da coberta: Tenho sono como o frio de um cão vadio*. Vem, traz a esperança, vem, traz a esperança. O meu cansaço entra pelo colchão dentro. Doem-me as costas de não estar deitado de lado. Se estivesse deitado de lado doíam-me as costas de estar deitado de lado.** Mas esperem... Há quem os despreze mas há quem os queira embalar... Um dia dirigi-me a uma instituição num portugal de pequeninos e ofereci os meus braços e o meu tempo. Deixei a minha inscrição para voluntariado depois de perder um par de horas a conduzir velhotes pelos corredores com medalhinhas do Doutor Sousa Martins em riste e muitas palavras já com traça nos roupeiros da memória. Absentismo familiar. Básico. Mais tarde voltei a oferecer, a minha alma a outra instituição de renome internacional. Na televisão as estrelas e as tias a dar chá aos doentes, num show cadavérico e esquecido, para algumas, um café depois. Aqui vendem-se almas. E eu aguardo, aguardo, desespero... Mercúrio tem passado e também não me traz respostas das instituições onde depus as minhas asas... Ninguém me chama, acho que já lá vão 43800 horas... Mas um acamado necessita mudar de posição de duas em duas horas... Quem se eu gritasse, entre as legiões de Anjos me ouviria? ***
Uma pequenina menina, a Cóquinha, não esperou, agarrou no pai, deixou tudo e dedicou-se a ele tendo como pano de fundo uma cama. Papas, hidratantes, almofadas, fraldas que nos fazem rabo de pato, fé, vontade, consciência, humanidade... Um MITO... Houve uma hora em que Yeats disse a Wilde: "Invejo os homens que se tornam um mito ainda em vida". Ao que ele respondeu creio que um homem deve inventar seu próprio mito"... Pois é. Mas, depois de amanhã. Há quem espere pelo depois de amanhã para se inventar... A Cóquinha não esperou...


Citações
* Alvaro de Campos in Adiamento
** Alvaro de Campos in Insónia
*** Rainer Maria Rilke in Primeira Elegia


Hoje sirvo Coktail Beijo de Anjo
Ingredientes :
1/2 dose de licor de cacau
1/2 dose de licor de ameixas
1/2 dose de aniz
1/2 dose de creme de leite fresco

Preparação:
Ponha os ingredientes num cálice alto, cuidadosamente, para que se não misturem e sirva em seguida.

2 comentários:

Alexandre disse...

Ah, queria ser o visitante 500, falhei por 4. Bom, mas o importante são os posts e esses sim são lindos, de muito bom gosto e de uma grande sensibilidade. Um beijinho!

Anónimo disse...

A ementa é convidativa, a sobremesa feita com arte
.
Um beijonho
Eros Andy